Sério e simpático: Pedro Pinto Selbach
Meu pai era o maioral; meu pai era um cara legal.
Digo isso não apenas como filho, mas pela história que Pedro Pinto Selbach
construiu em 80 anos de vida.
Chegou ao Vale dos Sinos há 74 anos somente com a
roupa do corpo, tentando fugir de uma vida difícil que se desenhava para a
família Selbach em Santa Maria. O caçula do seu Arthur e da dona Vitalina tinha
a cabeça cheia de sonhos e muitos planos. Como ninguém, sabia que só era
possível vencer pelo trabalho. E ele trabalhou como ninguém.
Aos 12 anos já era funcionário da Aços Plang, uma
siderúrgica no Centro de Novo Hamburgo. Morava no Travessão, em Dois Irmãos, ou seja, distante 10 quilômetros da
empresa...
Fazia o percurso de tamanco, a pé, todos os dias.
Para chegar no horário, deixava a casa dos pais às 4h da manhã. O salário era
pouco e ele logo percebeu que era preciso melhorar os rendimentos para poder
ajudar ainda mais em casa. Arrumou serviço depois da hora: limpar os banheiros
da empresa... Fazia isso como se o patrão tivesse lhe dado um bônus, afinal,
era uma oportunidade de ganhar mais que estava recebendo...
Depois de uma rotina de mais de 12 horas de
trabalho exaustivo, lá voltava ele para o Travessão, chegando em casa tarde da
noite. Com o tempo, percebeu que era preciso pensar no futuro e investir.
Comprou um terreno na Vila Dihel. Na minha infância, nunca consegui entender
porque nossa casa era enveazada. Anos mais tarde meu pai me explicou: ele havia
comprado um barranco... E depois do serviço, retirava a terra em um carrinho de
mão para aumentar a área útil no imóvel...
E assim, à sua maneira e com o apoio de minha mãe
e de minha tia Helena, o seu Pedro foi tendo sua família. Criou seis filhos,
deu educação e exemplos diários para todos.
- Vocês têm que economizar 30% do salário bruto
para poder investir e formar um patrimônio...
- Nunca envergonhem o nome da família....
- Saber não ocupa espaço... Estudem para ter o
futuro que eu não pude ter porque tive que trabalhar....
- Ninguém vai construir estabilidade gastando
mais do que arracada, seja o governo ou a família de vocês....
Na hora da dificuldade, dizia sempre:
- Força e coragem....O resto é bobagem....
Na carona, em um cruzamento como caroneiro,
avisava:
- Pare, olhe, escute...recordando-se certamente
de seu período em Santa Maria, onde os trens fizeram parte de sua infância...
Quando chegávamos em sua casa, mesmo com a doença
comprometendo sua saúde, repetia para todos:
- O velho caminhando, tá tudo bem. Eu sou um
sujeito feliz. Tenho a família ao meu lado. E isso não é pouca coisa....
Ao meio-dia, gritava para a mãe:
- Adir, trás a panca...
E lá ia a Adir levar o almoço. Primeiro o feijão,
que era cuidadosamente amassado. Depois, devolvia o prato para ser completado
com arroz, batata, carne, salada.... Se alguém deixasse no prato,
dizia:
- Deixa que o velho arremata. Comida a gente não
põe fora...
Na hora do banho, outra ordem:
- Adir, a toalha...Minha roupa.....
E lá ia a Adir cumprir as determinações...
À noite, escovava os dentes caminhando pela casa
e falando com todos.... Esse hábito foi compartilhado pelos filhos, e muitos o
repetem até hoje, inclusive netos... E assim os anos foram se passando. Colocou
um pequeno armazém na Vila Dihel em uma época em que mini-mercado era coisa de
cidade grande. Com sua simpatia e humildade, conquistou o bairro inteiro e
prosperou. Trabalhava de domingo a domingo, das 6h da manhã até o último
cliente aparecer, o que podia se estender além das 22h.
Nos anos 70, um dos poucos prazeres que admitia
para si mesmo era ir a Porto Alegre em dias de jogos importantes de seu
Internacional. O Colorado era uma das paixões do Foguinho... E nestes dias
especiais, saía cedo de casa em direção ao Beira-Rio. Voltava tarde, cheio de
histórias para nos contar.
- Nenê, Alemão, dizia para mim e meu irmão Artur,
o Figueiroa fez um golaço hj. Que zagueiro....O Valdomiro cruzou da direita e
ele subiu lá em cima, deu um testaço pra baixo...sem chances para o goleiro do
Cruzeiro.... Ele subiu mais de um metro de altura, é incrível a impulsão
dele...e o Manga, então.... Que goleiro...Que goleiro....Fez cada defesa...Segurou
um chute do Nelinho com quatro dedos quebrados....
As histórias eram repetidas e, não raro, pedíamos
para ele contar de novo como o Figueiroa subia, como o Manga defendia e como o
Falcão jogava de cabeça erguida, a bola colada ao pé...uma elegância só....
Sua simpatia fazia com que, em dias de Gre-nal,
as pessoas deixassem suas casas para irem ouvir o jogo no rádio em seu armazém.
A venda do Pedrinho ficava lotada e ele vendia muita cerveja.
Meu pai era um grande motorista também. Certa vez
ele e seu inseparável amigo Elemar Eltz ficaram sem freios na descida da Pedreira,
em um caminhão lotado de pedras. Ele veio costeando o veículo contra o
barranco, fazendo com que a velocidade diminuísse, ao mesmo tempo em que ia
usando o freio do motor, até o carro parar. E assim os dois se salvaram sem que
outros se ferissem.
Incrivelmente, ele acreditava que eu era um
grande motorista. O que ele não sabia era que desde pequeno eu procurava imitar
seus movimentos. Íamos de Rural para a praia e ficava concentrado, observando
os movimentos dos pés, o jeito que ele segurava a direção e fazia o difícil
parecer tão fácil...
Com os anos e a chegada dos netos ele foi se
tornando mais doce, mais tolerante e ainda mais querido com todos. Os filhos,
os netos, a família como um todo, eram sua preocupação. Queria a união de todos
e trabalhou incansavelmente para isso durante toda sua vida.
Também nunca consegui entender como ele nunca
teve uma conta em banco ou cartão de crédito...
- Isso é só pra gente se endividar, Mário....
Igualmente, nunca consegui entender como sempre
tinha dinheiro em casa ou nos próprios bolsos. Em dificuldade, sabíamos que na
mala preta do velho sempre haveria, pelo menos, R$ 500,00...
Me recordo de outra frase clássica que repetia
para todos os seus amigos no balcão do armazém:
- Vocês vão morrer, eu vou viver pra sempre...
Da maneira dele, fazendo pilhéria de uma situação
tão embaraçosa, estava certo: a morte é apenas uma passagem e ele seguirá
vivendo para sempre em cada um que teve contato com ele, em especial nos amigos
e familiares que o amavam incondicionalmente.
Tenho certeza de que se pudesse dizer algo neste
momento diria:
- Helena, minha parceira, irmã amada: obrigado
por tudo, pela dedicação, companheirismo e amizade.
- Adir, obrigado pela panca, pelos nossos filhos
e pelo amor ao longo de 53 anos de casados. A morte não nos separou, até breve.
- Meus filhos amados: Artur, meu baita macho,
Chico, meu mais velho, Mário, meu jornalista, Nena, minha filha querida, Ana,
minha médica e filha amada, Fofa, minha caçula abençoada, meus netos queridos –
Cássio, minha cópia, Rafa, meu preto, Fran, minha primeira neta e nossa preta amada, Carol, minha lindinha, Marina, minha
princesinha, Mona, meu anjinho, o velho está bem. Quero que vocês também
estejam bem. Cuidem-se e amem-se uns aos outros. Minha jornada chegou ao fim,
mas este não é o fim. É um recomeço, uma nova fase, uma passagem até que todos
nos reencontremos novamente.
Vai em paz meu pai, vai em paz meu ídolo. Teus
ensinamentos continuarão conosco, tua vida seguirá em nossas vidas. Tu
construiu tudo isso, és o grande arquiteto e artífice dessa família, a luz que
seguirá iluminando nossos passos.
Com amor, família Selbach.